Ilusão 1: A crença no passado
- renatobaldissera

- 17 de jun.
- 3 min de leitura
Como fabricamos histórias coerentes para dar sentido ao que já aconteceu
A mente humana tem uma habilidade extraordinária — e traiçoeira — de reorganizar o passado para que ele pareça fazer sentido. Muitas vezes, sem perceber, criamos relatos incoerentes ou incompletos e os tratamos como verdades absolutas. O mais curioso? Acreditamos firmemente neles.
Segundo Daniel Kahneman, uma boa história é aquela que apresenta uma sequência clara e coerente de ações, intenções e causas. Essa narrativa, quando bem construída, parece explicar por que algo aconteceu, como se os eventos estivessem inevitavelmente conectados. Atribuímos comportamentos a traços de personalidade, deduzimos intenções a partir de ações, e montamos uma trama onde tudo se encaixa perfeitamente, assim acreditamos em historias de sucesso e de “super heirois” mais do que deveríamos.
O efeito halo e a coerência ilusória
Um dos fatores que contribuem para essa ilusão de coerência é o chamado efeito halo. Esse fenômeno ocorre quando o julgamento positivo (ou negativo) sobre uma característica marcante de uma pessoa influencia a percepção de todas as outras características dela. Em termos simples: uma única qualidade relevante pode contaminar nossa visão do todo.
Um exemplo claro é o julgamento de um jogador de futebol. Se ele é alto, atlético e tem uma boa presença física, tendemos a classificá-lo como um excelente goleiro — mesmo que nunca o tenhamos visto jogar. Essa associação parece lógica, mas não passa de um atalho mental. Não há nenhuma garantia de que a aparência física realmente corresponda à habilidade esportiva.
O caso da Google: sucesso ou sorte?
Kahneman nos convida a refletir sobre histórias de sucesso que parecem altamente inspiradoras — como a trajetória da Google. Existe uma narrativa bastante difundida sobre como a empresa cresceu: decisões inteligentes, liderança inovadora, cultura empresarial única entre outras variáveis. Ao ouvirmos essa história, sentimos que estamos aprendendo algo valioso sobre como alcançar o sucesso nos negócios.
Mas essa sensação de compreensão é, na verdade, uma ilusão cognitiva. O verdadeiro teste de qualquer explicação convincente seria avaliar se ela tornaria o sucesso previsível antes que ele ocorresse. E, nesse caso, nenhuma das histórias sobre a ascensão da Google passaria no teste. Por quê? Porque nenhum relato consegue dar conta de todos os fatores imprevisíveis que poderiam ter levado a empresa a um caminho completamente diferente — inclusive ao fracasso.
Além disso, como muitas das decisões tomadas ao longo da trajetória da Google acabaram dando certo, tendemos a superestimar a habilidade dos fundadores e subestimar o papel da sorte. A própria existência de escolhas importantes que terminaram bem já nos induz a acreditar que houve uma sequência lógica e bem planejada — mas basta imaginar um pequeno infortúnio em qualquer etapa do processo para que tudo tivesse desandado.
E aí o efeito halo age mais uma vez: atribuímos aos protagonistas uma aura de genialidade e visão quase infalível. A narrativa os transforma em heróis, com uma trajetória que parece ter sido inevitável — quando, na realidade, dependia de inúmeros fatores aleatórios e externos.
Acreditamos na melhor história que conseguimos contar
Ao final, o que fazemos é montar a melhor história possível com base nas informações disponíveis. Se essa história for coerente e bem construída, acreditamos nela — mesmo que ela ignore aspectos fundamentais, como o acaso, os riscos assumidos, ou os caminhos alternativos que poderiam ter sido tomados.
Essa tendência de organizar o passado em uma sequência lógica pode ser reconfortante, mas também nos torna vulneráveis à ilusão da certeza. Afinal, o mundo real raramente funciona de forma tão previsível quanto as narrativas que contamos para explicá-lo.
No próximo artigo: vamos entender por que nossa confiança nas decisões passadas costuma ser muito maior depois que já conhecemos o desfecho.
📚 Referência:KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
Autor: Renato Baldissera Economista e estudioso do comportamento humano nas relações de trabalho, consumo e gestão. Criador da Capital Interno.
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